Discernir a própria vocação ou “fazer o que der na telha”?

Há alguns anos nós publicamos aqui uma matéria a respeito do chamado “discernimento vocacional perpétuo”. O texto e a expressão não eram de autoria nossa; pegamo-los emprestados de Michael W. Hannon, que escreve no sitenorte-americano First Things. Por muito tempo republicamos esta tradução em nossas redes sociais, mas, reavaliando melhor as ideias apresentadas pelo autor, decidimos despublicá-la e, agora, até para a edificação dos que nos leem, queremos apresentar o porquê dessa atitude.

Expliquemos, em primeiro lugar, o porquê de havermos escolhido esse texto para publicação: a sua crítica é importante para levantar da inércia os homens e mulheres de nossa época, que ficam indefinidamente pensando no que querem ou no que vão fazer de sua vida, sem no entanto tomar uma atitude ou assumir responsabilidades de gente adulta. É essa inércia e indecisão — conectadas a uma espécie de “discernimento vocacional perpétuo” — que fazem nossos jovens trocarem de curso universitário como quem troca de roupa e viverem com os próprios pais até os 30 e 40 anos, quando em outros tempos eles já teriam constituído uma família ou entrado em uma congregação religiosa.

A solução apresentada por Michael Hannon, no entanto, ao mesmo tempo que procura condenar esse extremo de indecisão e imobilidade, pode facilmente levar à precipitação e a uma visão distorcida de “vocação”. No período talvez mais forte do texto, ele chega a dizer que “não necessariamente Deus nos diz o que fazer a respeito das grandes decisões da vida, incluindo a escolha entre a vida religiosa e a vida secular (sic). Ele nos abençoa com algumas opções boas e virtuosas e, então, deixa a decisão para nós”.

Alto lá…! Se por “deixar a decisão para nós” se entende que Deus não viola o nosso livre-arbítrio, não nos obrigando a seguir este ou aquele caminho, sim, está certo. Mas se por isso se entende que Ele não nos indica e não nos inspira com sua graça este ou aquele caminho, então, está errado. A palavra “vocação”, afinal de contas, significa “chamado”. Se é um chamado, há alguém que chama. (Se é um chamado à vida religiosa ainda por cima, ou à vida matrimonial, caminhos de santidade, é Alguém, com “a” maiúsculo, que chama.) Se Deus nos chama, de nossa parte o que precisamos fazer é escutar. Daí a necessidade de discernirmos, sim, nossa vocação pessoal, para além da vocação geral que, é óbvio, todos os batizados têm à santidade.

Também nessa questão há uma confusão séria presente no texto de Michael Hannon. À pergunta: “Se um cristão não deve presumir que Deus irá querer revelar-lhe sobrenaturalmente a sua ‘vocação pessoal’, como então ele deve conhecer a vontade de Deus para a sua vida?”, o autor diz o seguinte:

Eu me arriscaria a dizer que, se ele tem frequentado a igreja semanalmente e recebeu pelo menos uma catequese razoável ao longo do caminho, ele provavelmente já conhece a vontade de Deus para a sua vida. Cristo a resume sucintamente nos Dez Mandamentos, e ainda mais sucintamente em Mt 22, 34-40: “Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu entendimento” e “Amarás teu próximo como a ti mesmo”. Nisso, bem como nos mandamentos da Igreja, consiste toda a instrução de que precisamos para alcançarmos a nossa felicidade e chegarmos à salvação eterna.

Sim, é verdade que a vontade de Deus a respeito da humanidade foi revelada de modo definitivo em Nosso Senhor Jesus Cristo, de modo que — como diz uma célebre passagem de S. João da Cruz, presente inclusive no novo Catecismo da Igreja Católica —, “se […] alguém quisesse interrogar a Deus, pedindo-lhe alguma visão ou revelação, não só cairia numa insensatez, mas ofenderia muito a Deus por não dirigir os olhares unicamente para Cristo sem querer outra coisa ou novidade alguma” (§ 65). Mas isso não significa que não devamos pedir a Deus que nos mostre, na oração (e sem prescindir da humanidade santíssima de Nosso Senhor!), aquilo que Ele tem reservado de modo particular para a nossa vida.

“Vocação” é chamado. Se é um chamado, há Alguém que chama.

Convém aqui não misturarmos um capítulo importante de Teologia Dogmática com outro capítulo, igualmente necessário, de Teologia Mística. A frase de São João da Cruz, acima, é substancialmente diferente da do monge ucraniano citado por Hannon em seu texto: este, perguntado por um repórter se Deus falava com ele na oração, respondeu: “Ele não fala comigo, porque ele já falou tudo por meio do Evangelho e por meio das obras dos Santos Padres, dos santos”. É óbvio que, se pelo verbo falar se entende o modo como os seres humanos costumam se comunicar, falando com a boca e ouvindo com os ouvidos, Deus não fala com as pessoas a não ser de modo extraordinário.

Mas uma mínima experiência de vida de oração, uma leitura breve de um bom tratado de teologia mística, são suficientes para nos mostrar que Deus fala, sim, conosco, comunicando-nos as suas graças, movendo-nos com o seu Espírito e dizendo, sim, o que devemos ou não fazer, não só em matéria de “vocação pessoal”, mas principalmente nesses casos. Para dispensar longas citações, limitemo-nos a Santo Tomás de Aquino comentando o versículo “Porque os que são movidos pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus” (Rm 8, 14): “Esses são regidos como por certo condutor e diretor, que é o que faz em nós o Espírito, enquanto nos ilumina interiormente sobre o que devemos fazer [illuminat nos interius quid facere debeamus]” (Sup. Rom., c. VIII, l. 3).

— Ah, mas ele era “Santo” Tomás de Aquino… Deus falava interiormente com os santos mesmo… Por que eu deveria supor que Ele falaria comigo? Não seria presunção? — Absolutamente, não. Vejamos o que diz a esse respeito, por exemplo, o padre Antonio Royo Marín (Teología de la Perfección Cristiana, n. 638):

Consideremos com frequência que o Espírito Santo habita dentro de nós mesmos. Se deixássemos de lado todas as coisas da terra e nos recolhêssemos em silêncio e paz em nosso próprio interior, ouviríamos sem dúvida sua doce voz e as insinuações do seu amor. Não se trata de uma graça extraordinária, mas totalmente normal e ordinária em uma vida cristã seriamente vivida.

O problema do “discernimento vocacional perpétuo” não se resolve, portanto, com um ato de desistência e um dar de ombros como quem diz: “Farei o que eu quiser”. Se existe uma vocação de Deus para nós, precisamos descobri-la no silêncio da oração e através de “uma vida cristã seriamente vivida”. Como diz o Papa Bento XVI, em uma citação feita pelo próprio Michael Hannon ao fim de seu texto: “Ao ouvir a Deus e caminhar com Ele eu me torno realmente eu mesmo. O que importa não é a realização dos meus próprios desejos, mas a Sua vontade. Assim a vida se torna autêntica.”

Se existe uma vocação de Deus para nós, precisamos descobri-la no silêncio da oração.

Existe ainda, é claro, toda uma reflexão teológica sobre a docilidade que devemos ter ao Espírito Santo, assim que tomamos conhecimento da vontade de Deus a nosso respeito. Dela, no entanto, esperamos falar oportunamente noutra ocasião. Por ora, simplesmente procuremos nos libertar dessas ideias errôneas a respeito de vocação e vida de oração. Não tratemos a Deus como um “desconhecido” que falou no passado e agora nos abandonou à nossa própria sorte. Não, a oração cristã é uma via de mão dupla, na qual nós falamos com Deus e Ele responde sim às nossas petições, conforme promessa do próprio Cristo: “Pedi e vos será dado. Batei e vos será aberto. Porque todo aquele que pede, recebe. Quem procura, acha. A quem bate, será aberto.” (Mt 7, 7-8)

Via Pe. Paulo Ricardo

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